Conto
Chegou em casa no crepúsculo, a luz amarelada batendo nas
paredes de tinta carcomida e suja tinha gosto de frustração, lembrou-se de
quando queria pintá-la de azul, mas nunca o fez.
Chamou pelo cachorro, preguiçoso não veio atendê-la, talvez
porque soubesse que estava sozinha, mas sua presença malcheirosa estava ali na
porta de entrada.
Abriu a porta vagarosa e logo viu que a mãe passara por ali,
tirando a poeira e organizando as roupas
– teve vontade de gritar – mas sorriu docemente em agradecimento aos cuidados
maternos,
A casa parece muito espaçosa agora, joga as bolsas e livros
na cama e pensa “Como pode ter tantas cobertas e mesmo assim ser fria quando me
deito?”.
Acende um incenso
para tirar o cheiro de solidão. Abre as cortinas da cozinha e a janela da
biblioteca, mas o crepúsculo acabou e agora uma fria sensação de passado invade
a casa.
Ela se lembra do
cachorro, abre a porta dos fundos, lá está ele, abanando o rabo e olhando com
seus olhos de mel, parece que sente seu vazio e vem acarinha-la. Ela o afaga e
canta... De onde surgiu esta canção? “Sou rosa vermelha, ai meu bem querer,
beija flor sou sua rosa, sua escrava até morrer ...”. Ela tenta outra, “ Porque
eu preciso dizer que te amo, te ganhar ou perder sem engano”, ela pensa “Deus! Porque
estas canções?” “ Não posso cantar isso pro cachorro”, “Vamos tentar algo com
menos gosto de lembrança, mais animado”: “Que falta eu sinto de um bem, que
falta me faz um xodó, mas como eu não tenho ninguém...”
Desistiu. Pegou pá
e vassoura e foi limpar a sujeira da frente da porta, teve frio, alimentou o
cachorro e depois fechou a porta diante de seus olhos de mel, ávidos por mais
carinho, mas ela não podia mais cantar.
A noite agora era
pesada, lançou o olhar sobre seu corredor aceso, a luz amarelada parecia uma
mentira, foi apagá-la e acendeu a luz branca e muito forte da cozinha. Se
sentiu num hospital.
O incenso apagara e
deixara um cheiro de queimado amargo no ar.
Percebeu que estava
parada no fim do corredor olhando para a cozinha com a luz de hospital por
muito tempo, sentiu um gosto de sangue na boca e sua alma partida em dois, mas só
conseguiu pensar nisso: “Onde mora a saudade?”
Ficou ali parada
por mais um tempo, até sentir que tinha uma dor leve nos tornozelos, olhou
lentamente para seus pés, as unhas cor de sangue estavam descascadas e carcomidas
como a pintura das paredes lá de fora. As unhas também tinham gosto de
frustração... Engoliu em seco para tentar dissipá-lo, em vão, voltou a sentir a
leve dor nos tornozelos e notou que poderia ser a temperatura gélida que subia
pelas pernas como uma serpente, pelos pés descalços no piso frio acinzentado da
cozinha com luz de hospital no fim do corredor. Fez menção de ir até o quarto,
mas não queria se deitar agora, não queria estar sozinha, não queria estar
sozinha...
Pensando nisso, de
repente sentiu-se atravessada por um raio de ódio que partiu sua alma mais uma
vez, em segundos abandonou toda sua dignidade, não queria estar sozinha, correu
até o telefone celular e abriu o contato dele, não queria estar sozinha, ele a
tinha abandonado, era fraco, mas a amava, ela sabia e ela não queria estar
sozinha. Mandou uma mensagem: “não quero estar sozinha, vem pra cá”. Esperou. Esperou.
Dois minutos e nada. Desesperou-se. Abriu outro contato. Estava apaixonada e
esperançosa de que ele também estivesse, se iludia, mas gostava e não queria estar
sozinha, ele tinha namorada, mas ela sentia que gostava dela também, e ela não queria
estar sozinha. Mandou a mesma mensagem. Esperou. Esperou. Um minuto e meio e
nada. Começou a ficar desesperada, a abrir novos contatos, amigos, amigas, gente
que sabia que gostava dela, mandou umas vinte mensagens, idênticas, cansou e
jogou o telefone longe. Explodiu em lágrimas azedas e quentes.
Percebeu agora que
estava agachada e escorrida entre a geladeira e o armário, com a coluna toda
encostada no azulejo gelado, a cabeça rodava, o vazio era faminto, a lâmpada de
hospital continuava acesa, o silêncio apitava nos ouvidos.
Não sabe quanto
tempo ficou ali, com o apito nos ouvidos e o gosto amargo na boca, e as
lágrimas azedas no rosto. Até que entendeu: A saudade morava nela. Em seu
sangue. Em seu corpo. Queria se livrar dessa saudade. Estendeu a mão em direção
ao armário. Pegou a faca de cabo branco. Abriu as veias dos braços pra saudade
escorrer pelo chão.
Nunca soube se
alguma daquelas mensagens foi respondida ou atendida, embora pouco antes de
perder os sentidos tenha desejado que o ex marido, a paixão, os amigos, as amigas,
todos, tivessem vindo enxugar suas saudades do chão, desejou que lágrimas
azedas rolassem sobre seu corpo refletido de luz de hospital e que abraçassem seu
corpo inerte sem se importar com o cheiro de sangue.
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