“Minhas historinhas de morte”
Ela machucou mesmo, pela primeira vez,
Quando a minha pequena ave
Um patinho acinzentado
Insistiu em não me atender
- eu o chamava todos os dias
Quando voltava da escola –
Ele pulava da gaiola
Subia a rampa verde
Até bicar os meus pés
Nós éramos inseparáveis.
Um dia, o chamei várias vezes,
Ele não veio, fui até lá
Ele dormia ... dormia...
Eu disse: preguiçoso!
e o peguei nas mãos
O frio do seu corpo subiu até
minhas orelhas: gritei!
Mais tarde, meu melhor amigo se
foi,
Ele doía, doía muito,
Uivava e gritava
E eu o sentia chorar
Ele tinha uma doença
Nada fácil de se explicar para
uma criança
“câncer no sacro escrotal”
Disse a veterinária
“Que saco papai?”
...A primeira vez que vi papai
chorar...
O cachorro, uivando de dor,
rodeando o canil,
Papai pegou a espingarda e
“Não! Na frente da menina não!”
Mamãe ralhou
No dia seguinte Proteu não
estava mais no quintal
Uma bisavó e uma tataravó se
foram também,
Mas tão em paz, que se
despediram de mim em vida,
Quando as crianças e os
velhinhos entendem melhor do que os adultos o que é o céu, e o que significa
dormir pra sempre.
Não as velei, não as enterrei,
Não precisava,
Elas me disseram adeus e eu
entendi
Mas Maria
Maria, nome comum de vó,
Maria de belos quitutes,
Maria analfabeta,
Maria mãe, avó, lavadeira,
jardineira, fazendeira, passadeira, quituteira de bar
Como tantas outras Marias
Maria minha avó
Reclamava de tudo,
Do avô, dos netos,
Do frio, do calor, da dor, do
cansaço,
Eu, adolescente,
Me enchia – pára Maria!
Meu pai brincava, minha mãe
sorria,
Numa noite
De repente
Fria
Maria, dor aguda
No fundo da barriga
Hospital – cirurgia –
Partia – morria Maria
?
Fui atropelada
Por
Maria-trem-sem-fumaça..........
Não consegui velá-la
Tampouco enterrá-la
Uma desculpa boba
“Quero lembrar-me dela viva
Bem...rezando...
Cantando...cozinhando...”
“Maezinha do céu,
2 xícaras de farinha,
eu não sei rezar,
3 cenouras médias,
Eu só sei dizer,
Cobertura de chocolate com
leite,
quero te amar ”
Hoje ainda não me despedi,
ainda choro e não me perdoo.
Ninguém deve se abster de
sofrer a morte
De velar, de chorar, gritar,
despedir, soluçar, enterrar
São ritos necessários
Para se continuar vivendo.
Anos mais tarde
Esqueci meu coelhinho preso
embaixo da escada
Úmida, fria,
Bicho enjoado
Adoeceu numa tarde
Lembrei-me dele no dia seguinte
Encontrei-o com olhos
envidraçados
Patinhas gélidas
Narizinho imóvel
Mas
Respirava.
Peguei duas toalhas, enrolei-o
em meu colo e fui para o sol,
Disse-lhe ao pé da grande
orelha
“Se você morrer
Vai ser no conforto do meu
abraço
Vou vela-lo e enterrá-lo
como não fiz com nada,
nem ninguém até hoje”
às oito da noite ele fechou os
olhos e não abriu mais.
Chorei
Cavei um buraco
Sozinha
Enterrei
Chorei
Chorei
Aprendi a morrer-matar quem se
ama
Ontem fui ver meu avô
Caipira mulato
Forte, bondoso
Com aquele olhar de inocência
cabocla
Homem íntegro
Corajoso, bravo
Herói da família
Melhor amigo dos amigos
Dia 27 de abril
Não estava esperando minha tia na calçada às
cinco e meia da manhã
Ontem, 4 de agosto
Ele estava na cama
Magro, sem musculatura,
Olhos vítreos
Pele gélida
Parecia meu coelhinho...
Fiz carinho em seu rosto com a
ponta dos dedos
Ele me olhou lânguido
Trocamos algumas palavras
Trivialidades
Chorei
Percebi que já estava velando
meu avô
Mas também senti que ele estava
pronto
Em paz
Ontem aceitei
Que falta pouco tempo
Para ficarmos juntos
Hoje já espero que ele melhore
E volte a plantar alface e
rúcula para a minha salada
O rito de morte dói.