Era uma vez uma criatura presa numa
torre. Não a torre mais alta, nem a mais inacessível, não era uma torre
encantada e havia muitas outras ainda por ali, onde a vista alcançava, enfim não
era uma torre em especial. Apenas contaremos a história dessa criatura, porque
é a única que, sabemos, existia de verdade.
Até onde podemos entender existência e
verdade.
Mas então, a criatura um dia acordou,
coberta com seus edredons macios e cheirando amaciante, num quarto de no máximo
seis metros quadrados, bem arrumado, limpo e confortável. Um quarto que tinha
um custo, uma história, um dono e uma porta destrancada.
Quando acordou a criatura se viu
angustiada e tolhida, bem no seu amago se sentiu perdida, sozinha e trancafiada
a uma realidade que não lhe agradava. Assim a criatura passou a tentar escapar
daquele cubículo.
Capitulo 1 O Celular
Primeiro ligou seu aparelho celular,
nele encontrou muitos números, alguns rostos, algumas fotos de paisagens que
não conhecia. Muita gente sorrindo, bebendo e comendo.
Ela tentou se lembrar se conhecia
alguma daquelas figuras pessoalmente, mas não se lembrava de ninguém com
sorrisos tão abertos. Não se recordava de ninguém que lhe tivesse mostrado
paisagens tão bonitas. Não se recordava de ninguém que amasse, se divertisse e
fosse tão bem sucedido como aquelas pessoas nas fotos.
Então ela começou a pedir ajuda a eles.
Perguntou a todos que podia, se alguém
teria um tempo para vir tirá-la daquela torre tão alta e tão solitária. Muitos
reclamaram da falta de tempo, pois estavam ainda trabalhando, não obstante ser
sábado. Outros disseram não terem dinheiro para gastar em bebidas por aí,
apesar de que nossa criatura não tinha pedido exatamente que a levassem para
algum lugar, apenas que a tirassem de onde estava; ela tinha quase certeza que
eram coisas diferentes, mas nenhuma das bonitas fotos no celular parecia ter
muito cérebro para entender essa diferença e isso chegou até a confundir a
criatura. E outros ainda disseram que estavam também presas ou amaldiçoadas
esperando igualmente um herói ou heroína que os viesse salvar.
Houve ainda um duende que se ofereceu
para ir até sua torre e devorá-la acabando assim com seu sofrimento. Mas a
criatura sabia que seria um alívio momentâneo e que depois ela estaria presa na
barriga do duende, ainda sozinha e provavelmente sem celular. Assim dispensou a
pequena ajuda.
Creio que agora é o momento de explicar
o que é um duende: o duende é uma outra criatura dessa terra onde há muitas
torres, não se sabe ao certo se eles possuem cérebro, magia ou força, pois
nunca ninguém se aproximou muito para saber. Duendes são criaturas bastante
resguardadas e misteriosas apesar do que dizem as más línguas sobre o
comportamento deles nas sextas feiras ao anoitecer.
A criatura central dessa história, no
entanto, não é um duende, disso sabemos, mas não podemos afirmar o que seria.
Mas não me culpem! Não sou apenas eu que não sei, saibam que a própria criatura
não tem muita certeza de quem ela é, nem como se parece.
É estranho, mas, a criatura por vezes
mira-se no espelho e vê cabelos cumpridos e cacheados, uma pele lisa e alva e
uma alma; as vezes vê uma couraça acinzentada protegida por quilos de gordura e
chifres, as vezes vê rugas e cabelos da cor da neve e um sorriso doce, as vezes
vê um coração escuro e muitas lágrimas...
Entendam, portanto, minha dificuldade
em apresentá-la de maneira mais precisa e tomados de empatia, assim espero! Prossigam
a leitura sem recriminações, mas com a liberdade de criar a criatura que melhor
lhes aprouver. Combinado?
Só, por gentileza, atendam ao pedido da
criatura e não a imaginem como um duende. Ela afirma que não o é.
Capitulo 2 A TV
Como todas aquelas criaturas
maravilhosas e bem sucedidas encontradas no aparelho celular na verdade estavam
submersas em suas próprias vidas e não podiam ajudar a criatura, ela decidiu
usar outro instrumento mágico.
Uma caixa que contava histórias,
historias bonitas, “reais”, tristes, tragédias cotidianas, tragédias
ficcionais. Ela tinha esperança de que aquelas historias a salvariam da angústia
e do tédio que se aplacava cada vez mais paralisante sobre seu corpo e que
assim, talvez, ela pudesse escapar de sua torre.
Realmente por algumas horas a criatura
chorou, sorriu e temeu por aqueles belos personagens, mas passado esse
maravilhoso efeito inicial, a criatura, que, podemos afirmar não era tão
estúpida, passou a compreender que aquilo tudo era tão fantasioso que chegava a
ser impossível. Que ela, a criatura, não sendo bela, esbelta, esgrimista e não
tendo um príncipe encantado que a resgatasse, jamais poderia viver aquelas
aventuras e aqueles finais felizes.
Assim, decepcionada e chorosa, nossa
criatura desligou a televisão
Capitulo 3 A Porta Destrancada E O
Dragão Triste.
Não sabendo mais o que fazer, tendo
molhado seus edredons e travesseiros com lágrimas e estando à beira do
desespero: decidiu pôr fim a sua própria vida.
Levantou-se, abriu a porta e buscou um
pouco de veneno na cozinha.
Não esperava ela, que ao caminhar de
volta para seu quarto, encontrasse um dragão.
A enorme figura soltava incansavelmente
uma fumaça tóxica por todos os seus orifícios, emanava também um cheiro
inebriante ácido e urrava.
Seus urros eram tão altos que faziam a
cabeça da nossa criatura rodar, a fumaça a fazia tossir a plenos pulmões e o
cheiro asfixiava a tal ponto que ela quase veio a falecer.
Estando assim tão perto da morte certa
a criatura largou o veneno pensando que, se sobrevivesse aquele encontro
tentaria valorizar mais sua própria vida, mesmo que enfadonha e angustiante.
Enquanto se perdia nestes pensamentos o dragão se aproximava. Mas quando chegou
bem perto a criatura pôde ver que os urros, na verdade eram soluços de
tristeza. O dragão chorava, chorava tanto que soluçava e ofegava como uma
criança perdida de seus pais no meio do caos.
O dragão era quase a coisa mais triste
que a criatura já tinha visto. Quase, porque além de sozinha e angustiada,
nossa criatura também é egocêntrica e, ao se comparar com o dragão, teve o
disparate de se sentir ainda menos afortunada.
De qualquer maneira, sua tristeza
transbordou em seus olhos, e o dragão, reconhecendo outra criatura amargurada,
voltou a se enrolar em posição fetal perto da janela deixando nossa criatura
voltar livremente para seu quarto.
Capitulo 4 A Janela E As Outras
Criaturas
De volta ao seu cubículo, sem veneno,
sem heróis do celular e sem histórias da televisão que a ajudassem a escapar, a
criatura se jogou na cama e por algumas horas o dragão triste e ela disputaram
o tamanho de suas infelicidades tornando a vizinhança surda com a orquestra de
choro compulsivo que se seguiu.
Quando suas lágrimas finalmente secaram
e sua cabeça já estava a ponto de explodir de tanto chorar, a criatura percebeu
uma luz. Um tímido raio de sol que atravessava as frestas de sua janela.
Uma janela! Rapidamente a criatura
abriu a janela.
Primeiro pensou nos filmes que tinha
visto na televisão e imaginou uma fuga agarrada pelas laterais da torre,
descendo como uma verdadeira espiã pelos blocos, mas quando ela pegou um
banquinho para ajudar a subir no parapeito, tropeçou, caiu na cama e percebeu
que essa ideia era uma grande tentativa de suicídio.
Apoiou-se então na janela e observando
as nuvens achou que seria poético lançar-se dali de cima, de braços abertos,
rumo ao desconhecido. Imaginou que, assim, heróis cantariam por séculos e
séculos a bonita morte da criatura da torre, louvando seu nome e sua beleza
pela eternidade.
Ao olhar em torno, infelizmente, a
criatura se decepcionou também com essa possibilidade. Absolutamente ninguém
olhava para ela e ela voaria sem ser vista, espatifaria no chão como uma
panqueca e fim, sem ser feliz pra sempre, nem de verdade nem nas canções.
Outras criaturas iam e vinham,
apressadas, brincantes, estressadas, em seus veículos sozinhas ou amassadas em
grandes latas velozes, ninguém sequer olhava pra sua torre, nem sequer sabia de
sua existência, ninguém nem imaginava que talvez, naquela torre, dentre tantas
torres, houvesse uma criatura angustiada pronta para se lançar no vazio.
Então nossa criatura começou a observar
o comportamento das outras criaturas, no chão, nos veículos, nas latas velozes,
na torre bem a sua frente. Ela olhou o horizonte, as casas, as torres, os
veículos, as árvores e tudo lhe pareceu tão irreal, tão inconsistente, que sua
visão até embaçava. A paisagem tremia como uma miragem. Nossa criatura se
perguntou o que era real? O que era verdade? O que não era nem real e nem
verdadeiro?
E estes pensamentos a levaram a observar
o que as criaturas da torre imediatamente a sua frente estavam fazendo. Um
homem segurava um bebê. Uma mulher passava roupas. Uma criança importunava seu
cachorrinho peludo. Um velho olhava a rua. O que aquelas criaturas estavam
sentindo? O que estavam pensando? Será que eram felizes? Angustiadas? Será que
tinham medos? Desejos? Problemas insolúveis? Segredos?
E nas torres em que a criatura não
podia enxergar as janelas, aquelas lá no horizonte, ali dentro daquelas torres
de concreto existiam também criaturas? Criaturas e seus bebês? Criaturas e suas
roupas? Criaturas e seus anos envergando suas colunas?
E nos carros? Nos ônibus de lata de
sardinhas? Aquelas criaturas passando velozes fugiam de quê? Desejam ir para
onde? Buscavam incessantemente exatamente o quê?
Será que em alguma torre ao longe,
alguma esquina, ou alguma janela outra criatura como ela olhava em sua direção
sem a enxergar?
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