Estou nua, sentada na cadeira de frente para a janela aberta
O céu cinza chumbo; parte porque vai anoitecer em breve
Parte porque aqui é chuvoso e poluído.
É sexta feira, quase a noite, estou na cidade mais badalada
do país
Mas não sinto vontade de me mexer.
Estou cheia de palavras e mesmo assim elas saem com dificuldade
Meus dedos batem no teclado como numa máquina de escrever
Lembro me com docilidade da primeira vez que meu pai
Datilógrafo competente, digitou em um teclado,
Pobre maquinário, como apanhou naquela noite!
São tantas palavras como num enxame de abelhas
Que me picam ferozmente por dentro das veias
Quase perco o fio do pensamento, a linha do discurso
Retomo
Estou sentada na cadeira, abraçando meus joelhos,
Com os cabelos soltos e nua
E essa é uma posição desconfortável porque sou gorda
Mas no meu quadro mental é bonita e frágil
Minha pele toca o assento da cadeira de tecido texturizado
O encosto de madeira lisa
Minha pele toca minha própria pele
O frio toca a minha pele e a arrepia, eriçando meus seios
Minha boca toca suavemente o meu ombro
Aos poucos a boca se abre, a língua experimenta a pele,
Os lábios e os dentes tocam a pele
Me mordo
Quero sentir o toque de alguém
Não quero me sentir desperdiçada, envelhecendo sozinha, sem
ninguém.
A mordida tem gosto de sangue
E desejo que alguém me experimente
Minha pele ainda é perfumada, arrepiada é bonita apesar das
celulites e estrias,
Meus cabelos são brilhantes e ondulados, embora alguns fios
já nasçam prateados
Eu os acho belos, refletem a lua...
Queria que alguém me experimentasse!
E se permitisse querer cada vez mais.
Experimentasse sem medo, nem pudor
Experimentasse, mordesse, mastigasse, comesse por todos os
poros.
Porque todo o sabor e aroma que tenho por fora
Refletem a profundidade da minha alma e do meu ser
Gostaria que alguém se dispusesse a me mergulhar
Oceano...
Você pararia o que está fazendo agora e viria ao meu
encontro?
Você que me ama, meus amigos, irmãos, anjos que me deram a
vida
Seria possível parar tudo agora e vir ao meu encontro?
Não. Ninguém viria.
Mas se lhe chegasse um convite de velório
Velar meu corpo, minha pele eriçada e cheirosa apesar das
celulites
Meus cabelos ondulados e brilhantes apesar dos fios
prateados
Se fosse para me velar, ver meu corpo pela última vez
Então viriam? Deixariam tudo pra trás agora e viriam?
Apesar do erotismo, apesar das palavras nefastas
...
Não.
Não vou me desculpar pelo erotismo, nem pelas palavras fúnebres.
Sofro assédio constante pela minha pele eriçada e meus
cabelos brilhantes
Apesar de ser gorda
E também não estou me desculpando por ser gorda
Esse assédio me cansa, me limita e me enoja
Esse assédio me esvazia, me coloca num lugar muito simplista
Muito abaixo do que realmente sou.
Quero ser desejada, mas não assediada
Quero alguém que deseje me acompanhar apenas por que meu
caminho parece interessante
Que deseje conversar apenas porque posso oferecer temas
interessantes
Que deseje me oferecer a melhor parte de si apenas porque
reconhece que ofereço a melhor parte de mim
Que deseje confiar em mim apenas porque deseja ser confiável
Que deseje me proteger porque me ama e não porque eu preciso
Que deseje beijar minha boca pelo o que ela diz e não apenas
por seu gosto
Que deseje meu corpo porque é a forma mais direta de tentar
tocar minha alma.
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