Intromissão
Desculpe a
intromissão. Mas da mesma maneira que varro o meu quintal e devolvo as folhas
da árvore do meu vizinho, tive a necessidade de “devolver” estas palavras que
caíram depois da ventania para você. Desde já peço perdão pelo transtorno
artístico-poético talvez dramático demais.
Sou fértil para
palavras
Entenda-se, quaisquer
palavras
Tipo erva daninha
Não necessariamente
belas
Alastradas pela pele
Elas brotam violentas
Violáceas
Como as manchas roxas
que tenho na alma
Tipo sangue pisado
Tão difícil ser assim
tão crente num mundo ateu
Crente na relação
Crente no contato
real com outro individuo
Que é também um mundo
de complexidades
E maravilhas em si só
Mas os indivíduos
cada vez mais se internalizam
Buscam o outro apenas
por necessidades pessoais
Egóicas, fisiológicas
as vezes,
Um único outro não é
capaz de suprir todos os buracos
Então buscam-se mais
e mais pessoas
Todas passam como
produtos numa esteira
E o indivíduo busca
lucrar com cada contato
Lucra-se momentos
bons aqui
Jantares ali, filmes
acolá,
Admiradoras vazias,
olhares insaciáveis
Tudo muito bom para
narciso
Mas, e o contato
verdadeiro?
Cada pessoa é um
mundo tão grandioso, cheio de imperfeições
Mas em perfeita
beleza harmônica com sua constituição histórica
Cheio de relatos,
traumas, vivências, fotos em preto e branco na memória
Cheio de flores, lágrimas,
sorrisos, dores
Mundos tão enormes em
uma única pessoa
Mundos com sua
atmosfera
Como é possível
ligar-se há tantos mundos desconhecidos ao mesmo tempo?
Como é possível
aproveitar cada encontro,
Compartilhar cada
detalhe, se há muitos mundos passando?
Então viramos
produtos na esteira da coca cola
Passa um, dois, três
mil
Importa pouco a
ligação
Não se aproveita a
ausência
Estar em conexão
também traz a necessidade de se aproveitar a ausência física
E aproveitar-se a
presença sutil da lembrança
Do cheiro, das
ideias, dos anseios
Estar de verdade em
conexão com o grande mundo que é uma outra pessoa
É ser e estar de
verdade
Principalmente na
ausência, descobrindo e desbravando possibilidades
Do outro e suas
É tão difícil ser
tudo isso em uma única conexão
Perdoe-me a descrença
Em que seja possível
em mais de uma de cada vez.
E digo
comprovadamente, de quem já teve muito amor e muita paixão para distribuir
Não é possível
tamanha entrega com mais de um imenso indivíduo de uma única vez
É possível distribuir
amor caso tenha muito
Distribuir sexo
Alimentar-se do amor
e do sexo de quem doa
Mas não conectar-se
em equilíbrio
Duradouro, investigativo,
instigante
Não é possível
entregar-se...
Há nas duas
possibilidades muita beleza
Mas já trilhei um dos
caminhos
Pretendo agora o mais
difícil.
Como diria o poeta
Pretendo agora
cultivar tanto a jardinagem de um único mundo
A ponto de me apaixonar
todo o dia pela mesma pessoa
E conquista-la todo o
dia mais uma vez.
Ontem tinha esperança
nisso
Hoje já não creio
tanto
Quando escrevi a
palavra tanto
Senti que acreditava
de novo
E no O do de novo já
não acreditava mais
No instante já da
Clarice
Acredito e não,
acredito e não acredito e não acredito e acredito de novo
No instante já da
Clarice estão lembranças de olhares
Sob o muro de casa
enquanto a língua gritava Clarice
Que me fizeram
acreditar
E depois me
machucaram
E de novo não
acreditava mais
Mas mais um instante
já se passou e agora choro
E rio e levanto-me
E escrevo
Que gostaria de ser
poderosa ao ponto de me fechar
De não querer ou
precisar de mais ninguém, nunca
Acredito agora na
capacidade de ter uma criança
Sozinha
Tenho o poder quase metafisico
de faze-lo
Deusa da vida, tenho
útero, seios
Gero e alimento e
crio
Menos dolorido pensar
em ter um filho
Do que pensar nas
simples experiências que planejei viver nas próximas semanas
Que no instante já
passado quando eu acreditava
Em Eros
Eram experiências em
dupla
Agora são
compromissos comigo mesma
E é tão triste
Comparar o passado
Quando eu distribuía
amor, paixão e sexo
E era igualmente
sozinha
E agora sozinha
Almejo uma única
conexão real e entregue
Não na saúde e na
doença na alegria e na tristeza todos os dias da minha vida até que a morte
Me reconduza ao pó de
onde sai
Mas na presença e na
ausência de verdade eterno enquanto dure de verdade
Cito Vinicius!
O mundo não sabe mais
o que é de verdade
Mas eu quero ser
forte para me recusar ao caminho fácil de novo
Cansei da esteira
Quero a arte da
jardinagem.